sábado, 29 de outubro de 2016

31º DOMINGO COMUM - Ano C



Refletindo o Evangelho do Domingo

Pe. Thomaz Hughes, SVD

 TRIGÉGIMO DOMINGO COMUM - Ano C
Lucas 19,1-10
Hoje a salvação entrou nesta casa"




Oração do dia

Ó Deus de poder e misericórdia, que concedeis a vossos filhos e filhas a graça de vos servir como devem, fazei que corramos livremente ao encontro das vossas promessas. Por nosso Senhor Jesus Cristo, Vosso Filho, na unidade do Espírito Santo.

Evangelho (Lucas 19,1-10)

Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas.
19,1 Jesus entrou em Jericó e ia atravessando a cidade.
2 Havia aí um homem muito rico chamado Zaqueu, chefe dos recebedores de impostos.
3 Ele procurava ver quem era Jesus, mas não o conseguia por causa da multidão, porque era de baixa estatura.
4 Ele correu adiande, subiu a um sicômoro para o ver, quando ele passasse por ali.
5 Chegando Jesus àquele lugar e levantando os olhos, viu-o e disse-lhe: Zaqueu, desce depressa, porque é preciso que eu fique hoje em tua casa.
6 Ele desceu a toda a pressa e recebeu-o alegremente.
7 Vendo isto, todos murmuravam e diziam: Ele vai hospedar-se em casa de um pecador...
8 Zaqueu, entretanto, de pé diante do Senhor, disse-lhe: Senhor, vou dar a metade dos meus bens aos pobres e, se tiver defraudado alguém, restituirei o quádruplo.
9 Disse-lhe Jesus: Hoje entrou a salvação nesta casa, porquanto também este é filho de Abraão.
10 Pois o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido.
Palavra da Salvação.

Comentário ao Evangelho

De novo entra em cena a figura de um “publicano”, desta vez de nome conhecido - Zaqueu! Os governantes arrendavam áreas do país para publicanos ricos, que embolsavam o que conseguiam extorquir além das taxas estabelecidas. Estes chefes dos publicanos (p. ex. Zaqueu) empregavam outros para fazer a cobrança - e enfrentar a celeuma do povo - sentados nos telônios nas portas das cidades e nas encruzilhadas das rotas das caravanas (p. ex. Levi).
Zaqueu era chefe dos cobradores de impostos da cidade de Jericó, e por isso, por causa da sua extorsão, muito rico - e com certeza muito odiado e desprezado.
Porém, Lucas nos mostra que ninguém é tão perdido que não possa ser salvo pela misericórdia de Deus. Ninguém está além da possibilidade de salvação. Com umas rápidas pinceladas, ele traça o caminho da conversão e salvação de Zaqueu.
Com certeza, Zaqueu tinha ouvido falar da atividade e dos ensinamentos de Jesus, e tinha uma enorme vontade de conhecer mais de perto este homem tão diferente dos outros rabinos, ou mestres religiosos, do seu tempo. Nem levava em conta perder a sua dignidade, subindo em uma árvore - o importante mesmo era não perder o momento de Jesus passar. Jesus acolhe este gesto de busca - olha mais para esta chama de bondade do que para toda a maldade praticada anteriormente por Zaqueu. Pronuncia as palavras que iriam mudar para sempre a vida de Zaqueu: “Desça depressa, Zaqueu, porque hoje preciso ficar em sua casa.” (v. 5)
Por causa dessa iniciativa, o próprio mestre se torna alvo de críticas por parte dos “justos”: “Ele foi se hospedar na casa de um pecador” (v. 7). Como sempre, a novidade do Reino, trazida por Jesus rompe todos os esquemas sociais e religiosos pré-concebidos!
Diante do gesto de amor da parte de Jesus, trazendo para si o opróbrio normalmente reservado para Zaqueu, o publicano responde com um gesto concreto de conversão: “A metade dos meus bens, Senhor, eu dou aos pobres; e, se roubei alguém, vou devolver quatro vezes mais” (v. 8)
Não é uma conversão teórica, mas, muito concreta, e passa pelo econômico - devolver o dinheiro roubado, partilhar os bens! O amor de Jesus conseguiu o que o ódio e o desprezo jamais conseguiriam - a conversão de um pecador - “Hoje a salvação entrou nesta casa”. Mais uma vez Jesus ilustrou de maneira muito concreta que Ele veio “procurar e salvar o que estava perdido”.
A história nos convida a assumir cada vez mais as atitudes tanto de Jesus como de Zaqueu - de um lado, compreensão, misericórdia e perdão diante dos erros alheios; do outro, reconhecimento da nossa própria necessidade de perdão e conversão contínua, para que se dê em nossa vida a experiência de Zaqueu, de que “Hoje a salvação entrou nesta casa!”

Salmo 144/145

Bendirei eternamente vosso nome;
para sempre, ó Senhor, o louvarei!

Ó meu Deus, quero exaltar-vos, ó meu rei,
e bendizer o vosso nome pelos séculos.
Todos os dias haverei de bendizer-vos,
hei de louvar o vosso nome para sempre.

Bendirei eternamente vosso nome;
para sempre, ó Senhor, o louvarei!

Misericórdia e piedade é o Senhor,
ele é amor, é paciência, é compaixão.
O Senhor é muito bom para com todos,
sua ternura abraça toda criatura.

Bendirei eternamente vosso nome;
para sempre, ó Senhor, o louvarei!

Que vossas obras, ó Senhor, vos glorifiquem,
e os vossos santos, com louvores, vos bendigam!
Narrem a glória e o esplendor do vosso reino
e saibam proclamar vosso poder!

Bendirei eternamente vosso nome;
para sempre, ó Senhor, o louvarei!

O Senhor é amor fiel em sua palavra,
é santidade em toda obra que ele faz.
ele sustenta todo aquele que vacila
e levanta todo aquele que tombou.

Bendirei eternamente vosso nome;
para sempre, ó Senhor, o louvarei!



Se quiser aprofundar o tema sobre Zaqueu, leia o artigo do exegeta Frei Rivaldave Paz Torquato, O.Carm.



RESUMO: O artigo é uma abordagem do episódio de Zaqueu na perspectiva da reciprocidade do olhar e suas implicações. Querendo ver Jesus, Zaqueu é visto por ele. O ver como experiência de um encontro com Jesus que muda a vida, que permite ao excluído redimensionar a própria existência e sentir-se impelido a ver também o outro. A experiência que transforma religião em ética. Para tanto, são apresentados alguns exemplos no AT mostrando que o ver de Deus, antes de ser uma expressão de controle moralizante e punitivo, exprime sua providência que abre sempre uma nova possibilidade ao ser humano na sua miséria. Enquanto espera-se que o que é visto, também veja. Este duplo ver (divino e humano) no AT juntamente com uma breve contextualização literário-teológica do próprio Evangelho servem de base para a abordagem do texto lucano. Ao mesmo tempo o episódio de Zaqueu deixa transparecer claramente a crítica de Jesus contra uma ideologia de exclusão disfarçada em nome da fé.



quinta-feira, 18 de agosto de 2016

ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA - ANO C


Refletindo o Evangelho do Domingo

Pe. Thomaz Hughes, SVD


ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA - Ano C
Lucas 1,39-56
Você é bendita entre as mulheres




Oração do dia

Deus eterno e todo-poderoso, que elevastes à glória do céu, em corpo e alma, a imaculada virgem Maria, mãe do vosso filho, dai-nos viver atentos às coisas do alto, a fim de participarmos da sua glória. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, Vosso Filho, na unidade do Espírito Santo.

Evangelho (Lucas 1,39-56)

Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas.
1,39 Naqueles dias, Maria se levantou e foi às pressas às montanhas, a uma cidade de Judá.
40 Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel.
41 Ora, apenas Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança estremeceu no seu seio; e Isabel ficou cheia do Espírito Santo.
42 E exclamou em alta voz: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre.
43 Donde me vem esta honra de vir a mim a mãe de meu Senhor?
44 Pois assim que a voz de tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança estremeceu de alegria no meu seio.
45 Bem-aventurada és tu que creste, pois se hão de cumprir as coisas que da parte do Senhor te foram ditas!”
46 E Maria disse: “Minha alma glorifica ao Senhor,
47 meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador,
48 porque olhou para sua pobre serva. Por isto, desde agora, me proclamarão bem-aventurada todas as gerações,
49 porque realizou em mim maravilhas aquele que é poderoso e cujo nome é Santo.
50 Sua misericórdia se estende, de geração em geração, sobre os que o temem.
51 Manifestou o poder do seu braço: desconcertou os corações dos soberbos.
52 Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes.
53 Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos.
54 Acolheu a Israel, seu servo, lembrado da sua misericórdia,
55 conforme prometera a nossos pais, em favor de Abraão e sua posteridade, para sempre.
56 Maria ficou com Isabel cerca de três meses. Depois voltou para casa”.
Palavra da Salvação.

Comentário ao Evangelho
O evangelho da festa de hoje tem duas partes bem distintas: o encontro entre Maria (grávida de Jesus) e Isabel (grávida de João), e o Canto do Magnificat.
Para entender o objetivo de Lucas em relatar os eventos ligados à concepção e nascimento de Jesus, é essencial conhecer algo da sua visão teológica. Para ele, o importante é acentuar o grande contraste, e ao mesmo tempo a continuidade, entre a Antiga e a Nova Aliança. A primeira está retratada nos eventos ligados ao nascimento de João, e tem os seus representantes em Isabel, Zacarias e João; a segunda está nos relatos do nascimento de Jesus, com as figuras de Maria, José e Jesus. Para Lucas, a Antiga Aliança está esgotada, deu tudo que podia dar - os seus símbolos são Isabel, estéril e idosa, Zacarias, sacerdote que não acredita no anúncio do anjo, e o nenê que será um profeta, figura típica do Antigo Testamento. Em contraste, a Nova Aliança tem como símbolos a virgem jovem de Nazaré que acredita e cujo filho será o próprio Filho de Deus. Mais adiante, Lucas enfatiza este contraste nas figuras de Ana e Simeão, no Templo (Lc 2, 25-38), especialmente quando Simeão reza: “Agora, Senhor, conforme a Tua promessa, podes deixar o teu servo partir em paz. Porque meus olhos viram a tua salvação” (2, 29)
Por isso, não devemos reduzir a história de hoje a um relato que pretende mostrar a caridade de Maria em cuidar da sua parenta idosa e grávida. Se a finalidade de Lucas fosse somente mostrar Maria como modelo de caridade, não teria colocado o versículo 56, que mostra ela voltando para a sua casa antes do nascimento de João. Também não é verossímil que uma moça judia de mais ou menos quatorze anos enfrentasse uma viagem tão perigosa como a da Galiléia à Judéia! A intenção de Lucas é literária e teológica. Ele coloca juntas as duas gestantes, para que ambas possam louvar a Deus pela sua ação nas suas vidas e para que fique claro que o filho de Isabel é o precursor do filho de Maria. Por isso, Lucas tira Maria de cena antes do nascimento de João, para que cada relato tenha somente as suas personagens principais: de um lado, Isabel, Zacarias e João; do outro lado, Maria, José e Jesus.
O fato que a criança “se agitou” no ventre de Isabel faz recordar algo semelhante na história de Rebeca, quando Esaú e Jacó “pulavam” no seu ventre, na tradução da Septuaginta de Gn 25, 22. O contexto, especialmente versículo 43, salienta que João reconhece que Jesus é o seu Senhor. Iluminada pelo Espírito Santo, Isabel pode interpretar a “agitação” de João no seu ventre - é porque Maria está carregando o Senhor.
As palavras referentes a Maria: “Você é bendita entre as mulheres, e bendito é o fruto do seu ventre” (v. 42) fazem lembrar mais duas mulheres que ajudaram na libertação do seu povo, no Antigo Testamento: Jael (Jz 5, 24) e Judite (Jt 13,18). Aqui Isabel louva a Maria que traz no seu ventre o libertador definitivo do seu povo.
Vale destacar o motivo pelo qual Isabel chama Maria de “bem-aventurada” (v. 45): “Bem-aventurada aquela que acreditou”. Maria é bendita em primeiro lugar, não por sua maternidade, mas, pela fé - em contraste com Zacarias, que não acreditou. Assim, Lucas apresenta Maria principalmente como modelo de fé. Já no relato da Anunciação, Maria expressou essa fé quando disse “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (v. 38). Assim, ela aceita não somente ser a mãe do Senhor, mas a protagonista da construção de uma sociedade de solidariedade e justiça, tão almejada por Deus. Por isso, Lucas faz uma releitura do Canto de Ana (1Sm 2, 1-10) e coloca nos lábios de Maria o canto do Magnificat, em sintonia com a espiritualidade secular dos Pobres de Javé, que, desprovidos de qualquer poder, põem a sua esperança em Deus, que “dispersa os soberbos de coração, derruba do trono os poderosos e eleva os humildes; aos famintos enche de bens, e despede os ricos de mãos vazias” (vv. 51-53). Longe de ser uma figura passiva, a Maria deste capítulo é modelo para todos que assumem a luta em favor de uma sociedade alternativa, de partilha, solidariedade e fraternidade, o projeto de Deus.
Podemos também acrescentar que neste capítulo primeiro nós encontramos as frases da primeira parte da oração da “Ave Maria”: “Ave Maria” (Lc 1, 28), “Cheia de graça” (Lc 1, 28), “O Senhor é convosco”(Lc 1, 28), “Bendita sois vós entre as mulheres” (Lc 1, 42), “Bendito o fruto do vosso ventre” (Lc 1, 42), que demonstra que, quando tratada com fundamento bíblico, a figura de Maria não é empecilho para uma caminhada ecumênica, pois, a Escritura a aponta como modelo de fé para todos nós!

Salmo 44/45

À vossa direita se encontra a rainha
com veste esplendente de ouro de Ofir.

As filhas de reis vêm ao vosso encontro,
e à vossa direita se encontra a rainha
com veste esplendente de ouro de Ofir.

À vossa direita se encontra a rainha
com veste esplendente de ouro de Ofir.

Escutai, minha filha, olhai, ouvi, isto:
“Esquecei vosso povo e a casa paterna!
Que o rei se encante com vossa beleza!
Prestai-lhe homenagem: é vosso Senhor!

À vossa direita se encontra a rainha
com veste esplendente de ouro de Ofir.

Entre cantos de festa e com grande alegria,
ingressam, então, no palácio real”.

À vossa direita se encontra a rainha
com veste esplendente de ouro de Ofir.




sábado, 13 de agosto de 2016

20º Domingo Comum - Ano C


Refletindo o Evangelho do Domingo

VIGÉSIMO DOMINGO COMUM - Ano C
Lucas 12, 49-53

Oração do dia

Ó Deus, preparastes para quem vos ama bens que nossos olhos não podem ver; acendei em nossos corações a chama da caridade para que, amando-vos em tudo e acima de tudo, corramos ao encontro das vossas promessas, que superam todo desejo. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, Vosso Filho, na unidade do Espírito Santo.

Evangelho (Lucas 12,49-53)

Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas.
Naquele tempo, disse Jesus 12,49 “Fogo eu vim lançar sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso! 50 Um batismo eu devo receber, e como estou ansioso até que isto se cumpra! 51 Pensais que eu vim trazer a paz à terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer a divisão. 52 Pois daqui em diante, numa família de cinco pessoas, três ficarão divididas contra duas e duas contra três; 53 ficarão divididos: pai contra filho e filho contra pai; mãe contra filha e filha contra mãe; sogra conta nora e nora contra sogra”.
Palavra da salvação.

COMENTÁRIO

Os “ditos” que o Evangelho de hoje nos apresenta são dos textos mais obscuros e difíceis de interpretar de todo o Novo Testamento. Particular dificuldade oferece o vers. 49, formado com palavras estranhas ao vocabulário de Lucas. Poderia ser um “dito” independente, recolhido por Lucas… Desconhecendo-se o contexto primitivo deste “dito” e as circunstâncias em que Jesus o pronunciou, é impossível determinar o seu significado e saber qual o “fogo” de que Jesus falava.
De qualquer forma, Lucas apresenta este material no contexto do “caminho para Jerusalém” – esse caminho que conduz Jesus ao dom total da vida. No horizonte próximo está, cada vez mais, o confronto final com a instituição judaica e a morte na cruz. Na perspectiva de Lucas, estes “ditos” fazem parte da catequese que prepara os discípulos para entender a missão de Jesus, a radicalidade do “Reino” e as exigências que daí brotam para quem adere às propostas de Jesus.
MENSAGEM
A caminho de Jerusalém e da cruz, Jesus dá aos discípulos algumas indicações para entender a missão que o Pai Lhe confiou (missão que os discípulos devem, aliás, continuar nos mesmos moldes). O texto divide-se em duas partes:
Na primeira parte (vers. 49-50), entrelaçam-se os temas do fogo e do batismo. Jesus começa por dizer que veio trazer o fogo à terra. Que quer isto dizer?
O “fogo” possui um significado simbólico complexo… No Antigo Testamento começa por ser um elemento teofânico (cf. Ex 3,2; 19,18; Dt 4,12; 5,4.22.23; 2 Re 2,11), usado para representar a santidade divina. A manifestação do divino provoca no homem, simultaneamente, atração e temor; ora, explorando a relação entre o fogo e o temor que Deus inspira, a catequese de Israel vai fazer do fogo um símbolo da intransigência de Deus em relação ao pecado… Por isso, os profetas usam a imagem do fogo para anunciar e descrever a ira de Deus (cf. Am 1,4; 2,5). O fogo aparece, assim, como imagem privilegiada para pintar o quadro do castigo das nações pecadoras (cf. Is 30,27.30.33) e do próprio Israel. No entanto, ao mesmo tempo que castiga, o fogo também faz desaparecer o pecado (cf. Is 9,17-18; Jer 15,14; 17,4.27): o fogo aparece, assim, como elemento de purificação e transformação (cf. Is 6,6; Ben Sira 2,5; Dan 3). Na literatura apocalíptica, o fogo é a imagem do juízo escatológico (Is 66,15-16): o “dia de Jahwéh” é como o fogo do fundidor (cf. Mal 3,2); será um dia, ardente como uma fornalha, em que os arrogantes e os maus arderão como palha (cf. Mal 3,19) e em que a terra inteira será devorada pelo fogo do zelo de Deus (cf. Sof 1,18; 3,8). Desse fogo devorador do pecado, purificador e transformador, nascerá o mundo novo, sem pecado, de justiça e de paz sem fim.
O símbolo do fogo, posto na boca de Jesus, deve ser entendido neste enquadramento. Jesus veio revelar aos homens a santidade de Deus; a sua proposta destina-se a destruir o egoísmo, a injustiça, a opressão que desfeiam o mundo, a fim de que surja, das cinzas desse mundo velho, o mundo novo de amor, de partilha, de fraternidade, de justiça. Como é que isso vai acontecer? Através da Palavra e da ação de Jesus, certamente; mas Lucas estará, especialmente a pensar no Espírito enviado por Jesus aos discípulos – e que Lucas vai, aliás, representar através da imagem das línguas de fogo.
Quanto à imagem do batismo: ela refere-se, certamente, à morte de Jesus (cf. Mc
10,38, onde Jesus pergunta a João e Tiago se estão dispostos a beber do cálice que Ele vai beber e a receber o batismo que Ele vai receber). Para que o “fogo” transformador e purificador se manifeste, é necessário que Jesus faça da sua vida um dom de amor, até à cruz. Só então nascerá o mundo novo.
Na segunda parte (vers. 51-53), Jesus confessa que não veio trazer a paz, mas a divisão. Lucas deixou expresso, frequentemente, que “a paz” é um dom messiânico (cf. Lc 2,14.29; 7,50; 8,48; 10,5-6; 11,21; 19,38.42; 24,36) e que a função do Messias será guiar os passos dos homens “no caminho da paz” (Lc 1,79). Que sentido fará, agora, dizer que Jesus não veio trazer a paz, mas a divisão?
O “dito” faz, certamente, referência às reações à pessoa de Jesus e à proposta que Ele oferece. A proposta de Jesus é questionante, interpeladora, e não deixa os homens indiferentes. Alguns acolhem-na positivamente; outros rejeitam-na. Alguns vêem nela uma proposta de libertação; outros não estão interessados nem em Jesus nem nos valores que Ele propõe… Como consequência, haverá divisão e desavença, às vezes mesmo dentro da própria família, a propósito das opções que cada um faz face a Jesus. Este quadro devia refletir uma realidade que a comunidade de Lucas conhecia bem…
Jesus veio trazer a paz, mas a paz que é vida plena vivida com exigência e coerência; essa paz não se faz com “meias tintas”, com meias verdades, com jogos de equilíbrio que não chateiam ninguém, mas também não transformam nada. A proposta de Jesus é exigente e radical; assim, não pode deixar de criar divisão.
ATUALIZAÇÃO
Refletir a partir das seguintes questões:
¨ O Evangelho mostra que o objetivo de Jesus não passava por conservar intacto o que já existia, pactuando com essa paz podre que não questiona o mal, a injustiça, a escravidão; mas o objetivo de Jesus passava por “incendiar o mundo”, pondo em causa tudo aquilo que escraviza o homem e o priva de vida. Como é que eu me situo face a tudo aquilo que põe em causa o projeto de Deus para o mundo? Como é que eu me situo face a tudo aquilo que cria opressão, injustiça, medo e morte? Com o conformismo e a indiferença de quem, acima de tudo, não está para se chatear com coisas que não lhe dizem diretamente respeito, ou com a coragem e o empenho de quem se sente profeta e enviado de Deus a construir o novo céu e a nova terra?
¨ O “fogo” que Jesus veio atear – fogo purificador e transformador – já atingiu o meu coração e já transformou a minha vida? Animado pelo Espírito de Jesus ressuscitado, eu já renunciei, de verdade, à vida de egoísmo, de fechamento em mim próprio, de comodismo, para fazer da minha vida um compromisso com o “Reino”, se necessário até ao dom da vida?
¨ A proposta de Jesus não passa pela manutenção de uma paz podre, que não questiona nem incomoda ninguém, mas por opções radicais, que interpelam e que obrigam a decisões arriscadas. No entanto, a Igreja de Jesus aceita muitas vezes abençoar as ideologias que escravizam e oprimem, para manter uma certa paz social (a paz dos cemitérios?), para “defender a civilização cristã” (como se pudessem ser cristãos aqueles que constroem máquinas de injustiça e de morte) ou para manter determinados privilégios. Quando isto acontece (e tão acontecido demasiadas vezes, ao longo da história), a Igreja estará a ser fiel a esse Jesus, que veio lançar o fogo à terra e que não veio trazer a paz, mas a divisão?
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 20º DOMINGO DO TEMPO COMUM
(adaptadas de “Signes d’aujourd’hui”)
A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 20º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.
BILHETE DE EVANGELHO.
Jesus era um apaixonado de Deus, seu Pai, e dos homens, seus irmãos. Como qualquer apaixonado, vem abrasar os que estão à sua volta com o fogo da sua paixão: as suas palavras aquecem, os seus gestos queimam, o seu projeto de mundo novo destrói o mundo antigo. Então, Ele gostaria tudo se iluminasse, que tudo se abrasasse, que tudo aquecesse. Porém, Ele encontra o tédio; alguns gostariam de apagar este fogo mesmo antes de ser acendido. O batismo de que fala é a sua Passagem, a sua Páscoa, este momento em que dará a maior prova do seu amor. Alguns gostariam de O impedir de falar ou de agir, mas Ele prosseguirá o seu caminho, este caminho que o levará ao calvário. Então, compreendemos quanto lhe custa esperar para dizer e manifestar até onde pode ir o Amor de Deus pela humanidade…
ESCUTA DA PALAVRA.
Como é estranho este Jesus, cuja missão consiste em fazer a paz e em reconciliar os homens com Deus e entre eles, este Jesus que dirá aos seus apóstolos “deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz” e que, aparecendo aos seus discípulos na tarde de Páscoa, dir-lhes-á: “Paz para todos”. E eis que hoje Ele declara: “Pensais que Eu vim estabelecer a paz na terra? Não. Eu vos digo que vim trazer a divisão”. Reconheçamos, primeiro, que Jesus não pensava necessariamente segundo a lógica cartesiana. A sua mentalidade semítica ignorava certas “nuances”, não tinha receio daquilo que nós chamamos contradições. Na realidade, tal maneira de falar obriga-nos a ultrapassar as aparentes contradições, a encontrar o “ponto nodal” do nosso pensamento. Segundo os homens, a paz pode ser um equilíbrio do medo, ou uma ordem que o mais forte impõe ao mais fraco (“pax romana”, imposta pelas armas romanas), ou ainda a paz dos cemitérios. Ela pode ser também a obra da justiça e esta paz já é bem mais difícil de realizar. Quando fala de paz, Jesus precisa que não é a paz como a compreendemos muitas vezes. A sua paz, não a dá como o mundo a dá. Ultrapassa os critérios humanos. A sua paz é, a realidade, o fruto do amor, mas de um amor desconcertante pelas suas exigências: “amai os vossos inimigos”. O amor que Jesus nos veio revelar e dar é o amor do Pai. Na medida em que aceitamos ir até aí, podemos entrever a paz segundo Jesus. Dito de outro modo, diante de Jesus, é preciso escolher: ou acolher o seu amor que faz saltar todas as nossas estreitezas, ou fecharmo-nos em nós mesmos pelo egoísmo ou pela indiferença. Na realidade, Jesus vem pôr a nu o nosso coração. Escolher por ou contra Jesus: inevitavelmente, surgirão conflitos. O fogo que Jesus traz à terra é o fogo do amor que desmascara as nossas recusas e, ao mesmo tempo, as purifica.
(Portal dos Dehonianos)

Salmo 39/40

Socorrei-me, ó Senhor, vinde logo em meu auxílio!

Esperando, esperei no Senhor,
E, inclinando-se, ouviu meu clamor.

Socorrei-me, ó Senhor, vinde logo em meu auxílio!

Retirou-me da cova da morte
E de um charco de lodo e de lama.
Colocou os meus pés sobre a rocha,
Devolveu a firmeza a meus passos.

Socorrei-me, ó Senhor, vinde logo em meu auxílio!

Canto novo ele pôs em meus lábios,
Um poema em louvor ao Senhor.
Muitos vejam, respeitem, adorem
E esperem em Deus, confiantes.

Socorrei-me, ó Senhor, vinde logo em meu auxílio!

Eu sou pobre, infeliz, desvalido,
Porém guarda o Senhor a minha vida
E por mim se desdobra em carinho.
Vós me sois salvação e auxílio:
Vinde logo, Senhor, não tardeis!

Socorrei-me, ó Senhor, vinde logo em meu auxílio!